"Eu quase nada não sei. Mas desconfio de muita coisa." Guimarães Rosa

UNIVERSO PARALELO II

02/05/2013 02:20

 

 

 

Enquanto isso num universo paralelo:
Onde as palavras fazem uso das pessoas II

 

Na mesma terra do velho poeta, fui convidado a ir a outro evento na noite seguinte. Era em um terraço coberto, amplamente ventilado e com uma belíssima visão. Tinha palavras de todos os tipos e tamanhos: palavras pequenas e grandes, velhas palavras que há tempos não são mais usadas e novíssimos vocábulos ainda cheirando a papel, palavrões grotescos e feios e belas palavras lisonjeiras, palavras soltas e leves e palavras que de tão gordas pareciam serem incapazes de se mover, textos enormes que ninguém entendia e belíssimas poesias.

Todas elas se moviam agitadas até que um grupo grisalho, muito polido e entediante adiantou-se a mandou que elas se ordenassem. Foram todas tomando seus lugares, ora em cadeiras, ora escoradas nos parapeitos, ora esparramadas no chão, ora flutuando levemente sobre a superfície do terraço.

Um grupo muito grande de palavras gordas; aladas; de ar lisonjeiro; muito enfeitadas, com broches, rendas e outras coisas esvoaçantes; se encaminharam jovialmente, meio que flutuando, à frente. Seu olhar era agudo e perspicaz, profundo e frio, e, enquanto esvoaçavam pelo púlpito, pareciam fixar os olhares nas outras no salão e desvendar-lhes a superfície _disse-me um velho sábio certa vez (creio que mais velho do que sábio) que as palavras são como o imenso mar e o profundo oceano, os banhistas exploram-lhes a praia, sem nunca se aventurarem mais profundamente. Os surfistas, mais audaciosos, vão além e exploram-lhes as ondas, as palavras revoltas e exaltadas são, para os ouvidos aventurosos, como as ondas revoltas para os joviais surfistas. Mas, para conhecer os tesouros, pérolas e riquezas das profundezas dos oceanos, somente os mergulhadores mais preparados, munidos de diversos aparatos e complicadíssimos equipamentos, podem mergulhar e desvendar seus mistérios, descobrir seus tesouros. Quanto mais fundo for capaz de mergulhar, mais coisas descobrirá. Somente o mergulho pode dizer os mistérios que serão capazes de descobrir os aventurosos espíritos que ousam adentrar os perigosos reinos das águas escuras do profundíssimo oceano. Também com as palavras, somente um mergulho profundo pode dizer que tesouras haverá nos abismos de cada discurso. Mas eu perguntei ao ancião se os mergulhadores conheciam os prazeres das aventuras dos surfistas, que se envolviam nos encontros do vento, da luz e das muitas águas, brincando alegremente de ora subir acima das ondas, ora deixar-se envolver por elas, sem se preocupar com as profundezas onde não há luz. O ancião morreu antes de me dar resposta_ voltemos àquele grande grupo esvoaçante, seus olhares perfuravam a superfície das outras e atiravam-lhes água da praia, julgando com isso conhecerem profundamente a si próprias.

Seus olhos, profundos, fechavam-se num túnel escuro e vazio e, embora parecessem ler as outras, nada podia ser lido em seu olhar. Elas não desfilavam como as outras, ora voavam ora se derramavam pelo chão, distribuindo sorrisos frios e agrados às estupefatas palavras silenciadas do salão e, embora o espírito dessas pesasse à apresentação daquelas, elas se deixavam encantar por seu balé terrível e hipnótico. Coisas grandiosas eram vistas em sua soberba apresentação, apesar de gordas, eram ágeis.

Finamente, quando o grande grupo de vocábulos, que permaneceu de mãos dadas do início ao fim, começara a dar mostras de estar chegando ao termo de sua representação, uma forma começou a surgir. Um senhor; no outono da vida, meio calvo meio grisalho (e a parte grisalha brilhando como prata ensebada), com um majestoso terno escuro e uma gravata tão larga que parecia pesar-lhe, sapatos lustrosíssimos e rosto alisado plasticamente, com grandes porções de cal a cobrir-lhe os rios sucosos que a ida da primavera teria lhe abrido na fronte, e um vistoso relógio apertado no pulso gordo; começou a tomar forma. Primeiro um espectro fantasmagórico, depois se materializando paulatinamente até tornar-se real. Era um velho deputado.

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